Um Blog dedicado à análise social e econômica, que discute desenvolvimento humano, justiça e comportamento social e meio ambiente, a partir de uma perspectiva crítica. Aqui, artigos opinativos se misturam a reflexões apoiadas em dados e referências teóricas, mas com um toque de informalidade. Nosso objetivo? Fomentar diálogos que desafiem o senso comum.

17 de mai. de 2025

Quando a Política e o Serviço Público Perdem seu Sentido Original: A Degradação da Esfera Pública no Brasil

Mirelle Cristina de Abreu Quintela

30 de abril de 2025                           
                                                                                

A atuação de muitos ocupantes de cargos políticos no Brasil frequentemente se desvia das atribuições e obrigações funcionais previstas nos ordenamentos jurídicos e normas regimentais correspondentes, transformando-se em um cenário de desordem, oportunismo e irresponsabilidade. Esse fenômeno pode ser explicado por uma combinação de fatores estruturais, culturais e institucionais que perpetuam a impunidade e minam a responsabilização (accountability) pública.

Em primeiro lugar, a fragilidade dos mecanismos de fiscalização e punição permite que agentes políticos ajam com impunidade, mesmo quando violam normas éticas e legais. Muitas vezes, as instâncias de fiscalização e de controle — como Tribunais de Justiça, Tribunais de Contas, Ministérios Públicos e até o próprio Legislativo — estão sujeitas a influências políticas, corporativismo ou morosidade processual, o que dificulta a aplicação efetiva de sanções. Além disso, a legislação, por vezes, oferece brechas que permitem a manipulação de processos disciplinares, transformando punições em meras formalidades sem consequências reais.

Não se pode ignorar a cultura política arraigada em práticas clientelistas e na priorização de interesses particulares em detrimento do bem comum. Muitos políticos não veem seus cargos como uma função pública, mas como um meio de acumular poder, benefícios pessoais ou vantagens para seus grupos de apoio. Essa distorção é reforçada por um sistema eleitoral e partidário que, em muitos casos, premia a lealdade ao grupo em vez da competência e da integridade.

A desaprovação pública, embora exista, nem sempre se traduz em consequências concretas. A população, muitas vezes desinformada ou desmobilizada, não consegue exercer pressão suficiente para mudar esse quadro. Além disso, a polarização política e a manipulação midiática frequentemente desviam o foco das reais irregularidades, transformando escândalos em espetáculos que se esgotam sem responsabilização efetiva.

É assim que a falta de transparência, o acesso limitado a informações detalhadas sobre a atuação dos agentes públicos e as notícias falsas dificultam e mascaram o controle social. Nesse contexto, sem um real fortalecimento institucional e sem uma conscientização humana que priorize a verdade, a ética, a eficiência e a punição rigorosa dos infratores, o cenário continua marcado por arroubos autoritários, desvios de conduta e a perpetuação do caos como estratégia política.

No bojo dessa realidade, a degradação do cenário político não se limita à ineficiência e à impunidade. Essa degradação é agravada pelo surgimento e pela consolidação de aventureiros políticos, cujos comportamentos absurdos e antiéticos são não apenas tolerados, mas celebrados como símbolos de "luta" ou "revolução", sendo utilizados como atributos valorosos e de comunicação política estratégica.

Esses personagens, que personificam o pior da índole humana — o oportunismo, a demagogia, a agressividade e o desprezo pelas instituições —, contrastam radicalmente com o discurso do suposto "homem de bem", mas paradoxalmente conquistam admiração e apoio popular. O resultado é a ascensão exponencial de figuras violentas e a completa inversão de valores. A pura contradição entre o discurso moralista e a adoração de figuras antiéticas.

Em parte, esse fenômeno é fruto de uma crise de representação política, na qual a descrença generalizada nas lideranças tradicionais abre espaço para políticos novatos (outsiders) que se vendem como "antissistema", mesmo quando reproduzem (ou intensificam) os mesmos vícios que dizem combater. A retórica inflamada, o culto à personalidade e a espetacularização da política criam uma dinâmica em que o desprezível se torna sinônimo de autenticidade, enquanto a seriedade e o equilíbrio são vistos como fraqueza ou "elitismo".

Além disso, a polarização extrema e a viralização de conteúdos nas redes sociais favorecem aqueles que dominam a arte do escândalo. Personagens que deveriam ser rejeitados e punidos por suas atitudes absurdas ou criminosas ganham notoriedade justamente porque chocam, geram engajamento e alimentam a dinâmica de engajamento digital (seguidores, curtidas e compartilhamentos). Nesse ambiente, a ética e o compromisso são substituídos por um teatro político degradante, e a racionalidade, pelo tribalismo ideológico. O que importa não é o caráter ou a competência, mas a capacidade de mobilizar ódios e paixões.

Cabe destacar ainda a manipulação do imaginário popular por meio de narrativas simplistas que transformam falhas morais em "coragem" e irresponsabilidade em "ousadia". Quando um político é flagrado mentindo, agredindo adversários ou defendendo absurdos, seus apoiadores não o veem como um delinquente, mas como um "herói" que "diz o que pensa" e "não tem medo de quebrar regras". Essa romantização da transgressão inverte valores básicos da diplomacia, das relações humanas e da convivência social, premiando justamente aqueles que mais a ameaçam.

O resultado é um cenário em que a mediocridade se torna virtude, o caos vira estratégia, e a figura pública mais execrável pode ser elevada à condição de ídolo. Enquanto a sociedade não resgatar a capacidade de distinguir entre o charlatão e o estadista, entre o demagogo e o líder ético, continuaremos a ver a política como um espetáculo de horrores — onde os piores instintos são recompensados, e o verdadeiro "homem de bem" é apenas um personagem retórico, cada vez mais raro e menos influente.

Para que se vislumbre um cenário de maior integridade na esfera pública, são urgentes reformas estruturais e legais, além de uma transformação cultural que valorize o serviço público e exija, de forma intransigente, o cumprimento das obrigações funcionais dos servidores públicos e dos agentes políticos no exercício de seus cargos são urgentes

Fazer cumprir o óbvio - o simples cumprimento das obrigações funcionais - demanda mais do que mecanismos de controle eficientes e reforma política: exige um amadurecimento coletivo, uma transformação cultural profunda que rejeite o culto à ignorância e valorize a ética genuína em detrimento de um teatro político vazio.

Essa mudança, por sua vez, só é possível através de uma revolução educacional desde a base, com um ensino fundamental verdadeiramente humanista e cívico.

A construção de uma sociedade mais íntegra passa, inevitavelmente, pela escola, pela educação básica e fundamental. Uma educação universal que forme cidadãos conscientes, capaz de ensinar:

  • Os fundamentos da vida em sociedade, incluindo direitos, deveres e o valor do bem comum;
  • O papel do Estado, seu funcionamento e a importância das instituições socialmente democráticas;
  • O papel do serviço público, mostrando que políticos e funcionários são servidores da população, não privilegiados. O serviço público é um meio para que o Estado cumpra seu papel constitucional.
  • Consciência cívica e cidadã, para que as novas gerações entendam que a política não é um espetáculo, mas o alicerce da nação.

A construção de uma sociedade mais íntegra exige ações simultâneas em três frentes: institucional, cultural e educacional. Somente através dessa abordagem integral é possível resgatar o verdadeiro significado da atividade política e garantir o cumprimento efetivo das obrigações funcionais por parte dos agentes públicos.

Sem isso, não é possível reconstruir os valores que sustentam uma sociedade justa e barrar a escalada de políticos que veem o poder como troféu, não como responsabilidade.