Mirelle
Cristina de Abreu Quintela
30 de março de 2025
Em um mundo que se autodenomina civilizado, onde o conhecimento científico e tecnológico alcançou patamares inimagináveis em séculos passados, e onde as universidades se apresentam como pilares da transformação social, motores do progresso e da inovação na vanguarda intelectual, é profundamente perturbador constatar que, no cerne dessas mesmas instituições, subsiste uma realidade medieval de violência, opressão e desumanização contra as mulheres. Essa dissonância entre o discurso público de excelência acadêmica e a prática cotidiana de misoginia institucionalizada não é apenas uma contradição: é um escândalo ético, um fracasso coletivo que deveria envergonhar toda a nossa sociedade. Este texto não é apenas uma denúncia; é um protesto contundente contra a hipocrisia estrutural que permite que, em pleno século XXI, mulheres sejam sistematicamente humilhadas, desacreditadas e violentadas nos mesmos espaços que deveriam representar o mais alto nível da racionalidade e da evolução humana e social.
Essa apatia coletiva, essa normalização da crueldade, não é apenas uma falha moral; é um sintoma de uma doença social que corrói as estruturas que deveriam nos proteger. E se há um lugar onde essa contradição deveria ser inadmissível, é no ambiente acadêmico, espaço que se presume ser iluminado pelo conhecimento, pela razão e pela ética. No entanto, como testemunham inúmeras professoras, pesquisadoras, técnicas administrativas, colaboradoras terceirizadas e alunas, a universidade — assim como tantos outros espaços — reproduz e amplifica a violência de gênero, muitas vezes sob o disfarce da "excelência intelectual" ou da "hierarquia institucional".
Quando ingressei como professora em uma universidade pública há mais de quinze anos, acreditava, com a ingenuidade dos que ainda confiam nas instituições, que estava adentrando um ambiente onde o mérito intelectual e a civilidade humana seriam as únicas moedas de valor. Naquele momento estava finalizando meu doutorado, um tempo que deveria ser de celebração e realização pessoal e profissional, quando me deparei com a primeira de muitas barreiras invisíveis: minha chefia imediata empenhou-se com notável diligência administrativa para obstaculizar minha viagem de defesa de tese, questionando administrativamente se havia "previsão legal" para tal deslocamento. Era o primeiro sinal claro de que, naquele espaço, minha condição de mulher me colocava sob suspeição sistemática — como se meu doutorado fosse um capricho pessoal e não uma conquista acadêmica legítima.
Diante daquela situação, escolhi não debater com a crueldade do argumento. Optei por uma estratégia de contorno: se não havia previsão para minha ausência como doutoranda, certamente existia para meu deslocamento como professora convidada por uma universidade federal de renome. Acabei transformando a tentativa de obstrução em reconhecimento formal de minha competência e valor intelectual — ironia das ironias, obtendo mais legitimidade institucional como visitante do que como membro efetiva do corpo docente. O que poderia parecer uma vitória pontual revelou-se, com os anos, apenas o primeiro capítulo de um padrão perverso: a universidade, como tantas outras instituições, constitui um território hostil para mulheres, particularmente para aquelas que ousam ocupar espaços, contestar hierarquias ou simplesmente exigir o respeito que seria automático para um homem em igual posição.
Essa experiência inaugural revelou-se profundamente emblemática: mostrou-me como a violência contra a mulher, muitas vezes, não se apresenta como agressão explícita, mas antes como um conjunto sofisticado de mecanismos institucionalizados de deslegitimação. Nossas competências, habilidades e palavra são postas sob suspeição permanente; nosso avanço profissional é obstaculizado por exigências burocráticas seletivas; nossa postura firme é definida como “agressividade”. E quando contornamos esses obstáculos, nossa vitória é tida como exceção que confirma a regra — nunca como evidência da regra perversa que precisa ser mudada. Desse modo, o próprio sistema se protege: transforma nossas vitórias em anomalias que justificam sua manutenção, enquanto nossas derrotas servem para confirmar seus pressupostos misóginos.
O que torna essa violência particularmente invisibilizada é sua natureza transversal e multifacetada. Ela não é praticada apenas por figuras de autoridade, mas permeia quase todas as relações hierárquicas, incluindo colegas de mesmo nível e até de níveis subordinados. Nesse sentido, quando um colega espalha calúnias sobre uma profissional séria — chamando sua firmeza de "autoritarismo", seu compromisso de “perseguição” ou sua competência de "arrogância" —, está usando a difamação como arma para neutralizá-la. E pior: quando outras mulheres compactuam com isso, seja por omissão ou participação ativa, estão reforçando a mesma estrutura que as oprime. É crucial entender que o assédio não obedece a hierarquias. Ele é democrático em sua crueldade.
Em quinze anos de carreira, em que tive a oportunidade de ocupar cargos de coordenação, chefia e representação, fui alvo de diversos espectros de violência de gênero: desde o assédio moral velado em reuniões, em que minhas contribuições eram sistematicamente ignoradas até serem repetidas por um homem e então celebradas, até a agressão quase física por parte de um colega professor que, muito nervoso, após uma reunião, direcionou a mim sua fúria. O episódio foi minimizado por colegas que me encontraram na saída da sala. Ouvi de alguns: “Você está nervosa”, “Nada aconteceu”, “Não foi nada”, “Não foi bem assim”, “Não fique tão emocionada”, "Foi só um susto", "Você está sensível demais", “Ele está sob muita pressão”. Pior que a agressão em si foi a reação daqueles que passaram por mim enquanto eu chorava assustada: encolher de ombros, como se fosse normal um profissional adulto perder o controle e quase atacar uma colega de trabalho. Essa normalização da violência é talvez o aspecto mais perverso do problema, pois transforma o absurdo em rotina, o escândalo em trivialidade. Na universidade, a violência está tão naturalizada que sua negação é instantânea. A mulher que ousa nomeá-la é taxada de emocionalmente instável, enquanto o agressor é poupado de qualquer questionamento.
A misoginia e o sexismo no ambiente acadêmico assumem formas diversas, uma mais danosa que a outra. A agressão verbal, por exemplo, é frequentemente disfarçada de "debate acalorado", como se o tom elevado e o palavreado agressivo fossem inerentes ao rigor intelectual, quando na verdade são apenas manifestações de machismo culturalmente aceitas. Quantas vezes presenciei colegas homens interrompendo mulheres com um "Deixa eu terminar!" agressivo, enquanto toleram pacientemente as divagações de outros homens? Quantas vezes vi ideias brilhantes de colegas mulheres serem recebidas com silêncio constrangedor, apenas para serem aplaudidas quando repetidas por um homem minutos depois? Esses pequenos afrontamentos, acumulados ao longo dos anos, constituem uma forma de violência psicológica tão danosa quanto o assédio explícito, pois corroem a autoestima profissional e a confiança intelectual das mulheres de forma quase imperceptível.
A violência emocional, por sua vez, opera através de mecanismos ainda mais sutis e perversos. Quando uma mulher assume posição de liderança, seu comportamento é imediatamente estereotipado e estigmatizado: se é firme, é "autoritária"; se é gentil, é "fraca"; se busca consenso, é "indecisa"; se toma decisões unilaterais, é "arrogante". Não há desempenho possível que escape à crítica misógina. Pior ainda é o fenômeno da sabotagem institucional produzido, também, por colegas mulheres. Quando uma mulher, ao invés de se solidarizar, reproduz esses padrões de opressão, não se trata de mera rivalidade ou comportamento de sobrevivência, isso, muitas vezes, é reflexo da internalização de um machismo que nos ensina a enxergar umas às outras como adversárias, nunca como semelhantes, nunca como aliadas. Muitas vezes, uma mulher reproduz a opressão como se a sobrevivência em um ambiente hostil exigisse que ela também se tornasse hostil.
Quantas vezes somos alvo de calúnia e difamação, que distorcem nossas ações e palavras para nos definirem como “ambiciosas”, “problemáticas” e “difíceis”? Quantas vezes vemos mulheres admiráveis em posição de poder serem sistematicamente boicotadas por membros de sua própria equipe e outros colegas de trabalho que jamais teriam tal comportamento com um chefe homem? Quantas vezes vemos uma mulher reagir diante de tantos absurdos e ser rotulada de "agressiva" ou "descontrolada" — um mecanismo perverso de inversão dos fatos, onde o opressor se faz de vítima e a vítima é punida por existir? Importa mais a reação da mulher do que o que causou a reação. Essa deturpação da realidade por parte do agressor é um sintoma evidente de covardia.
A postura de autovitimização é uma tentativa de desviar a atenção de suas ações e evitar a responsabilidade. Esse comportamento, frequente em agressores, demonstra uma incapacidade de enfrentar as consequências de seus atos de forma honesta e madura. Trata-se de uma estratégia que busca manipular a percepção alheia, criando um cenário favorável ao agressor. Mais uma forma de opressão nessa roda viva, nesse ciclo perverso.
A omissão institucional diante dessa realidade é criminosa. Universidades públicas, mantidas com recursos dos contribuintes, possuem estruturas burocráticas gigantescas para tratar de questões orçamentárias e administrativas. Contudo, quando se trata de proteger suas professoras, técnicas administrativas, colaboradoras e alunas do assédio institucional, a resposta costuma ser protocolar: Criação de comissões e diretorias de governança e integridade, produção de documentos muito bem redigidos, realização de seminários superficiais uma vez por ano no Dia da Mulher. No cotidiano, as mulheres são deixadas à própria sorte, à mercê de novas rodadas de violência. Na prática, o que ocorre é que os protocolos existem apenas no papel e nos discursos episódicos: denúncias se perdem em emaranhados burocráticos, e processos disciplinares, se instaurados, acabam sendo arquivados por "falta de provas", e os responsáveis seguem impunes, sendo, algumas vezes, promovidos para cargos mais altos. Em muitos casos, uma reclamação formal vira um documento contra a vítima, que passa a ser rotulada como "problemática" ou "criadora de caso". O Código de Ética do Servidor Público é objetivo: determina que é dever do servidor "tratar a todos com urbanidade, respeito e dignidade". Mas a mensagem institucional é clara e está na falsa dicotomia entre o discurso e a prática. A governança, nesse momento, torna-se um engodo e a integridade, um conceito abstrato, enquanto a violência segue concreta, crescente e impune.
O descrédito sistemático aos relatos femininos é uma estratégia de opressão tão eficaz quanto antiga. Quando uma mulher denuncia violência, seu testemunho é imediatamente questionado, e as provas são invalidadas: será que ela não está exagerando? Será que não houve um mal-entendido? Será que ela não provocou a situação? Essa desconfiança em relação à palavra feminina tem raízes históricas profundas, remontando às caças às bruxas e aos tribunais inquisitoriais, onde o testemunho de uma mulher valia menos que o testemunho de um homem. Séculos depois, na suposta era da informação e da razão, a dinâmica permanece essencialmente a mesma: a mulher que denuncia deve provar sua credibilidade, enquanto o homem acusado goza de presunção de inocência, quando não é transformado em vítima.
A hipocrisia social que sustenta essa estrutura é ainda mais revoltante quando contrastada com a retórica religiosa e espiritualizada, que prega o amor ao próximo e o respeito humano, tão cara à sociedade brasileira. Como pode uma nação que se declara majoritariamente religiosa, em suas várias crenças, e que ostenta em sua bandeira o lema "Ordem e Progresso", tolerar a barbárie e a toxicidade cotidiana contra metade de sua população? A espiritualidade, quando não se traduz em ação concreta, vira hipocrisia.
Como podem universidades que ostentam em seus estatutos e regimentos valores como "dignidade humana" e "igualdade" falharem tão grotescamente em proteger suas mulheres? A resposta é simples: porque nossa cordialidade é seletiva, nossa moralidade é conveniente, e nosso compromisso com os direitos humanos é, na prática, uma encenação midiática. A moral e a ética, quando não são praticadas, viram retórica.
Há pouco tempo, no Dia Internacional da Mulher, publiquei uma mensagem que explicitava essa contradição: "Agradeço pela lembrança e pela celebração do nosso dia: o Dia da Mulher. Mas eu trocaria todos os parabéns e felicitações por uma postura mais ativa e menos omissa de meus amigos e colegas diante de situações sexistas e misóginas, tanto nos pequenos momentos do cotidiano, quanto principalmente em nosso ambiente de trabalho. O que realmente precisamos é de alteridade, respeito e solidariedade de fato, traduzidos em ações concretas que promovam a igualdade e a justiça.". A eloquência do silêncio que se seguiu foi mais reveladora que qualquer ressonância. A ironia cruel: dias depois, eu mesma enfrentava nova rodada de desqualificações, desrespeito e agressões veladas no cumprimento de minhas obrigações funcionais. A lição estava dada: comemorações são toleradas, desde que não questionem a ordem estabelecida; homenagens são bem-vindas, contanto que não exijam mudanças reais.
Será que há uma saída nesse cenário violento?! Sinceramente, é difícil sabermos.
Pode até ser que haja uma solução para acabar com tanta opressão, mas ela teria que começar com a recusa individual a normalização da violência e a banalização da agressividade.
A saída para mudar esse cenário violento exige muito mais do que medidas cosméticas. Exige que as regras de conduta sejam cumpridas. Exige uma transformação radical na cultura institucional, como por exemplo:
1. Implementação de formação continuada sobre assédio e violência de gênero, não como mero treinamento burocrático, mas como confronto real com privilégios e preconceitos, para todos os membros da comunidade acadêmica, desde a alta administração até os colaboradores terceirizados, com avaliações periódicas que realmente impactem na progressão funcional.
2. Criação de canais de denúncia verdadeiramente independentes e seguros, talvez vinculados a órgãos externos para evitar conflitos de interesse, com garantias concretas de proteção às denunciantes contra possíveis retaliações.
3. Estabelecimento de um regime rigoroso de accountability e compliance institucional, em que gestores que negligenciarem denúncias ou protegerem agressores sejam pessoalmente responsabilizados, inclusive com advertências e outras medidas cabíveis quando comprovada omissão deliberada.
4. Adoção de políticas afirmativas que garantam paridade de gênero em todos os níveis decisórios, pois a sub-representação feminina nos espaços de poder é tanto causa quanto consequência da violência institucional.
5. Realização de campanhas permanentes de conscientização que envolvam toda a comunidade acadêmica, desconstruindo a naturalização da agressividade e promovendo uma cultura de respeito e empatia.
Enquanto nossas universidades continuarem a tratar a violência contra a mulher como um "problema pessoal" e não como uma questão estrutural que demanda intervenção institucional vigorosa, estaremos falhando coletivamente como sociedade, estaremos sendo cúmplices e coniventes com esse ambiente cada vez mais tóxico. Nenhuma mulher deveria ter que escolher entre sua dignidade e sua carreira. Nenhuma mulher deveria ver seu trabalho desvalorizado por causa de seu gênero. Nenhuma mulher deveria ser levada às lágrimas em seu ambiente de trabalho. Nenhuma instituição que se pretenda ética pode se calar diante de tanta brutalidade.
O silêncio é cumplicidade. O silêncio é violento. A omissão é conivência. Já passou a hora de rompermos com esses comportamentos e condená-los com ações concretas e efetivas. A universidade que não protege suas mulheres não merece ser chamada de espaço do saber, pois o verdadeiro conhecimento não pode florescer onde a dignidade humana é pisoteada.
Mulheres não se tornam "fortes" por aguentarem humilhações; elas são alvos de um sistema que as obriga a escolher entre a resistência e a ruína. Mulheres não se tornam "resilientes" por suportarem humilhações; elas são as vítimas de um sistema que as pune por existirem e quererem ocupar espaços. Mulheres não são fracas por chorarem; elas são fortes por revelarem em suas lágrimas a indignação insuportável que sentem diante de tantas atrocidades sofridas e vivenciadas no ambiente de trabalho.
Sempre que entrar em um lugar, qualquer que seja, saiba onde se encontra a saída. Sair não é desistir. Sair é mostrar que já deu, é decidir por uma estratégia de contorno, é reformular o caminho, é traçar uma nova rota, é não se permitir ser refém da própria indignação. “Malhar em ferro frio” ou “dar murro em ponta de faca” são posturas que não combinam com a força e a inteligência de uma mulher consciente de si mesma.
Essa mulher forte, inteligente e consciente não desiste; ela persiste, muitas vezes saindo de onde, um dia, escolhei estar, para fazer a mudança necessária e ser instrumento de transformação e saída. Ser, também, instrumento de transformação e saída para outras pessoas, para outras mulheres, em outro lugar. Essa postura sempre lança luz sobre escuridões.
Eu costumo dizer que, às vezes, ficar é desistir, é se submeter ao que o outro pensa de você. Por isso, saiba, sempre, onde se encontra a saída.
Ou mudamos essa realidade, ou seremos cada vez mais responsáveis por sua perpetuação. Certo é que a escolha é individual, todos os dias, em cada atitude, em cada omissão, em cada silêncio que decidimos manter. O preço da indiferença e da hipocrisia já é alto demais.
Basta, não é?!